sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A jornada de um leitor comum (Flavio Bevilacqua)


Ler “Ulysses” de James Joyce foi uma verdadeira jornada para mim. É um típico livro da série "Como alguém conseguiu conceber isso?". Durante anos passei por ele nas várias estantes de livros e nunca me despertou interesse. Minha história com esta obra-prima, na realidade, começou lendo outro livro, "Cloud Atlas" de David Mitchell (aquele que originou o filme "A Viagem" com Tom Hanks). Nas minhas pesquisas pela Internet para saber mais sobre este, me deparei com uma lista dos dez livros mais difíceis de serem lidos/traduzidos. "Cloud Atlas" era o quinto e "Ulysses", o primeiro. Foi o início da minha aventura. 

Nossa avaliação - 9.0
Meu gosto por encarar desafios já havia me levado aos "Irmãos Karamazov", "Guerra e Paz" e ao próprio "Cloud Atlas”. Achei que estava surgindo aí talvez o maior deles. Comecei a ler vários artigos pela Internet sobre o livro e me vi mergulhando num mar de curiosidades, opiniões de quem leu, opiniões estranhas de quem não leu, resenhas feitas de resumos, tentativas de explicação de trechos da obra, comparações variadas entre ele e a “Odisseia” de Homero etc. Comecei a me perder numa vastidão de informações sem sequer começar a lê-lo. Parecia que a obra estava lá longe, após um abismo gigantesco, com James Joyce ao lado falando: "Você não queria um desafio?". Antes de iniciar a leitura já havia passado por duas etapas da minha jornada. Primeiro, a euforia pela busca do desafio, depois o medo do desconhecido.

A chave para prosseguir com minha jornada veio de outro livro que virou filme: “A Vida de Pi” de Yann Martel (já resenhado aqui). Neste livro, o garoto, apavorado com a presença do tigre no mesmo bote, percebe que somente conseguiria sobreviver naquela situação se vencesse o medo e encarasse o tigre. Eu estava na etapa do medo e descobri que teria que "encarar o tigre". E encarei, tirando as seguintes conclusões: não conheço em detalhes a “Odisseia” de Homero para conseguir estabelecer paralelos entre este e "Ulysses". Não sou linguista para descobrir todas as palavras curiosas inventadas por James Joyce. Não sou historiador para identificar as sutilezas que o autor colocou no texto em relação à vida em sua terra natal. Não conheço James Joyce para sacar auto referências nos vários capítulos. E não tenho a menor pretensão de encontrar todos os enigmas impostos por ele e que intrigam milhares de pessoas há mais de um século. Quem começa a ler, dissecando a obra, na realidade tem medo de ser engolido por ela. Eu resolvi encarar como um simples leitor disposto a ler um romance como outro qualquer e não tenho vergonha em dizer que passei por trechos completamente confusos. E segui adiante. O que me importava era continuar minha jornada e me divertir com o que estava lendo. E posso dizer que ele me impressionou ao longo dos seis meses de leitura.

"Ulysses", que foi escrito entre 1914 e 1921, conta detalhadamente a vida de um pequeno grupo de personagens durante um único dia. Comparo esta intrigante simplicidade de enredo com um Cubo Mágico. Ao vê-lo montado, temos a certeza de ser algo fácil de ser resolvido. Mas basta três movimentos para alguém se perder em milhões de alternativas em busca de sua reconstrução. Com "Ulysses" não é diferente. O simples enredo ao longo das páginas torna-se algo tão incrivelmente difícil, elaborado, brilhante, intrincado e diabólico que espanta muita gente logo nos primeiros parágrafos. Eu pensei em desistir duas vezes. Em toda jornada, existe um momento de fraqueza. Mas quem dá a volta por cima e segue em frente dá mais valor ao desafio.

A proposta de James Joyce é mostrar que a vida de uma pessoa comum é uma odisseia diária, com seus obstáculos, suas alegrias, seus heroísmos e fraquezas. Neste momento ele quer se aproximar do leitor. Todos somos heróis desta jornada. O dia de "Ulysses" está dividido em dezoito capítulos. Para instigar a comparação com a “Odisseia”, cada capítulo possui o nome de um personagem da obra de Homero. Atualmente existem três traduções para o português. Eu li a terceira de Caetano Galindo que possui uma introdução muito boa sobre a obra. Dizem que a mais fácil de ser lida é a segunda de Bernardina da Silva Pinheiro.

Um ponto interessante que verifiquei ao longo de suas quase mil páginas é que lá estão técnicas de escrita que reencontrei em muitas outras obras mais recentes. Parece que vários autores beberam da mesma fonte. Cada capítulo possui uma técnica diferente. Um deles é narrado em primeira pessoa, outro é em terceira. O capítulo "Circe" é um roteiro de peça de teatro. E o último "Penélope", mais bizarro, é um monólogo de dezenas de páginas sem uma pontuação sequer, representando o fluxo contínuo de pensamento da mulher do protagonista em relação a suas angústias! Vi em "Cloud Atlas" esta mesma estrutura. O próprio enredo em forma de jornada também pode ser encontrado nas obras de Tolkien. E o próprio Joyce faz alusões à Shakespeare. Autor que inspira autor que inspira autor... Hoje em dia ao ler outros livros me pego dizendo: "Engraçado. Parece algo que li em Ulysses".

Outro ponto interessante é a capacidade de impactar com trechos corajosos para um livro escrito no início do século XX. Que outro livro atual teria uma descrição tão minuciosa do protagonista indo ao banheiro? Ou com detalhes tão pornográficos? "Ulysses" tem trechos de pura comédia, de total baixaria, de puro lirismo, de espantosa alucinação e tantas outras coisas mais. No final, parece que este livro fala de tudo.

Dois capítulos ficarão para sempre na minha memória: A conversa com o diabo em uma alucinação coletiva num prostíbulo (no tal do capítulo escrito em forma de peça de teatro) e o que todos os personagens caminham pela cidade, se esbarrando, cada um com suas preocupações, e formando um curioso labirinto na cabeça de quem lê. Não consigo descrever o que senti ao ler estes dois capítulos. Tal sensação, só encontrei neste livro.

E minha jornada chegou ao fim.



2 comentários:

  1. Eu espero um dia conseguir ler esse livro, porque sua resenha foi realmente instigante, mas melhor ainda é conversar com você e ouvir você lendo as passagens do livro (momento hilario da minha vida, confesso).
    Mas falando sério, acho muito legal que você tenha decidido ler o livro na boa, por vontade e não porque "é uma leitura obrigatória", mas por gosto mesmo. Eu li tanta coisa obrigada na faculdade que agora quando alguém diz que eu "tenho que ler" alguma coisa no sentido de ser obrigada mesmo, já me dá vontade de sair correndo!
    No mais, o de sempre, você é demais, Flavitcho!
    Beijos

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  2. Eu me interessei. Acho que vou procurar por esse livro e pelos outros que vc mencionou na resenha.

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